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Projecto Guelra

 

 

GUELRA é um laboratório. Um laboratório de ideias  onde é testada a relação entre o trabalho coreográfico, de co-criação na formação artística de jovens bailarinos, e o pensamento escrito. O projecto tem como objectivo principal reflectir sobre a relação entre  a natureza disciplinar das artes na dança e na escrita, partindo do pressuposto de Souriau (1983) de que o termo “arte são todas as artes” (Souriau, 1983, p. 2) e que todas elas – artes-  possuem uma correspondência entre si. Têm a dança e a escrita as suas linguagens específicas, tal como afirma Souriau (1983):

 

“Longe, pois, de aceitar uma correspondência entre todas as artes por serem todas traduzíveis em poesia, linguagem artística universal, devemos tomar cada arte em seu idioma próprio e estabelecer com paciência e cuidado o léxico das traduções.” (p. 7).

 

O meu cão voltou. Finalmente!!

 

-Essas individualidades... de nariz empinado! Acho que esse Souriau te quer dizer que as correspondências são impraticáveis.

-Como assim? - pergunto eu.

-Sim, impraticáveis. É ele que diz!... Bem, excepto a poesia. Nesse caso ele acha que é universal. Devias pensar no assunto!

-Não me parece nada disso. O que Souriau diz é que só é possível uma correspondência se se instaurar parâmetros , pois só assim se poderá encontrar diferenças e semelhanças. Ou seja, só assim se pode relacionar (no meu caso a Dança e a Escrita). Quanto à poesia, sim. Tens razão. Falarei mais tarde contigo sobre esse assunto.

 -As correspondências acontecem porque os artistas estão sempre a emprestar coisas uns aos outros. É o que esse senhor, de que tu estás a falar no projecto Guelra, chama tradução?

 -O léxico das traduções. Sim. De certa forma é isso. Mas o que me interessa  no projecto Guelra é onde ocorre esse ponto de ligação. Não o ponto em si.

-Interessa-te a comunicação.

-Sim.

 

Tal como nos diálogos com o meu cão, interessa-me o momento do encontro. A comunicação. O espaço que se cria entre qualquer coisa, durante um momento. Um  pedaço de branco entre o meu coração e o meu estômago que, como Camilo Castelo Branco tão bem descreveu é uma “(...) sensação esquisita de vácuo e despego, que a gente experimenta, uma polegada e três linhas acima do estômago, quando o amor ou o susto nos leva de assalto repentinamente. (...)” (1865,p.73).  Mas...

“Se quisermos penetrar até ao âmago de cada arte, aprender correspondências capitais, motivos cujos princípios sejam os mesmos nas mais diversas técnicas, ou – quem sabe? – descobrir leis de proporção ou esquemas de estrutura válidos para a poesia e a arquitectura, ou para a pintura e a dança, deveremos instituir toda uma disciplina, forjar conceitos novos, organizar um vocabulário comum, talvez inventar meios de exploração verdadeiramente paradoxais.” (Souriau, 1982, p. 18).  

 

Assim, o foco de atenção foi dirigido para a exploração de meios paradoxais: a ligação entre  o espaço, a memória , o corpo e a escrita , tendo como ponto de partida o mapa de uma cidade e sua posterior transferência para uma área de intervenção pré-determinada, com o objectivo de tentar organizar um possível “(...)objecto novo que não pertença a ninguém.” (Barthes, 2004, p. 102). 

 

O laboratório faz parte de um trabalho de pesquisa em educação artística dedicado à reflexão sobre o processo que decorre da relação entre a dança - que se produz hoje - e a escrita dos próprios criadores.  O que poderá impulsionar a relação entre pesquisa e trabalho artístico? O que move esta dobragem? O que esconde esta volta performativa da arte contemporânea? Não é só o falar sobre que interessa aos artistas. Certamente. É, julgo eu, a necessidade de pensar. Uma necessidade de conhecimento de si, valorizada pelos artistas, que tem exigido, necessariamente, o conhecimento do Outro.

 

Assim, verificamos as crescentes trocas e empréstimos entre as diferentes artes. Para Marc Jimenez (1999), “(...) paradoxalmente, assistimos a aproximações, a conjunções, a intercâmbios que tendem a abolir divisórias. Tudo acontece como se a vontade de criar elos entre as diferentes práticas artísticas, de associar materiais heterogéneos, de conjugar as práticas artísticas, fosse mais forte do que a preocupação de classificar, de ordenar, de “administrar” o domínio do imaginário e do sensível.” (p. 103). São múltiplas e diversificadas as referências que se encontram, também, na actualidade.

 

“De nos jours, l’artiste contemporain ne se limite plus à un seul médium. (...) La fin de l’unité des beaux-arts se caractérise effectivement par la dissémination des modes de création à partir de formes, de matériaux, d’objets ou d’actions hétérogènes que l’expression “art contemporain” définit imparfaitement.” (Jimenez, 2005, p. 28). 

 

O pensamento de Jimenez atesta a correspondência das artes mas, sobretudo, alerta para uma realidade da utilização de sistemas de signos, de que os artistas de hoje se apoderaram para a criação das suas obras.  Com isto verificamos que a convivência de elementos e idiomas próprios de cada arte (Souriau, 1982) - entre  trocas e empréstimos - , se estabeleceu.  Esta ideia pode  também ser lida em Roland Barthes (2004), que desta forma proclama a vontade de ver os artistas acabarem com as correspondências plurais das artes.

 

“A interdisciplinaridade, de que tanto se fala, não está em confrontar disciplinas já constituídas (das quais, na realidade, nenhuma consente em abandonar-se). Para se fazer interdisciplinaridade, não basta tomar um “assunto” (um tema) e convocar em torno duas ou três ciências. A interdisciplinaridade consiste em criar um objecto novo que não pertença a ninguém. O Texto é, creio eu, um desses objetos.” (Barthes, 2004, p. 102).

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