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conclusão.

"... so far as I am concerned, poetry and every other art was and is and forever will be strictly and distinctly a question of individuality....Nobody else can be alive for you; nor can you be alive for anybody else."​ (Cummings , 1981 , p. 24)

 

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Fechando um ciclo em que me fui inscrevendo chego, forçada38 por um novo ponto de partida, a esta escrita final.

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Esta escrita não é uma conclusão, mas sim um chegar ao ponto de partida onde tentei usar a justaposição de duas ou mais áreas para produzir conexões que fossem úteis na formação artística dos meus alunos. Mas as relações produzidas au fur et à mesure, não puderam ser separadas do movimento do pensamento de que foram parte. E nem sempre foi interessante. E, ainda, muitas vezes foi repetido. 

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A negociação instrumental das palavras para um fim que navegava noutra área e com outro vocabulário foi cansativa. Quis, inicalmente, evocar palavras que se destacassem de uma massa composta pelo corpo, pelo tempo, pelo movimento, pelo pensamento e pelo que ia descobrindo dentro de mim. Pedia às palavras que adquirissem uma realidade simbólica.

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Percebi, durante o processo, que este meu pressuposto seria bom se o meu desejo não fosse tratar as palavras como um fluido que se assemelha ao do movimento do corpo e que nasce do coração. Foi impossível, nesse caminho, encontrar as palavras certas.

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Num primeiro momento da minha pesquisa pedi aos participantes que produzissem textos anteriores às pesquisas de movimento para a construção de um trabalho performático e que os projectassem abstractamente. Julgo ter incentivado mais, nos alunos, a separação entre texto e performance e, desta forma foi perpetuando, durante um tempo, a minha questão inicial de pesquisa. Sendo o movimento dançado um evento que ocorre no espaço e no tempo, como poderia eu querer um texto a fixá-lo? Neste primeiro ponto de reflexão, persistiu o problema ontológico entre a escrita de textos e a dança, com que iniciei a minha pesquisa. É precisamente a separação entre a palavra e o movimento dançado que, segundo André Lepecki (2004), permitiu o reconhecimento deste última no início do século XIX, como uma “arte em excesso”(p.127). Ou seja: a identidade e potência do movimento dançado consiste na impossibilidade da sua tradução. A impossibilidade de evocar as palavras certas - porque essas palavras  provinham da esfera da intenção - fez-me rever todo o trabalho já realizado.

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Prossegui.  Reformulei a minha posição e experimentei novos caminhos. Andei para trás no tempo. Fui encontrar escritas em cadernos de 2007. Repensei algumas frases escritas que aí encontrei. Contudo, neste processo de experimentação, o tempo de finalização e a minha tentação em produzir um resultado não fez com que a escrita e a dança se tornassem num par natural. Os dois só se juntaram pelas suas diferenças e as relações que se estabeleceram só puderam ser repetidas pela sua constante mutação. Corri o risco muitas vezes, na repetição, de as ver naturalizadas. Corri o risco de não criar a distância com o meu objecto, que era simultaneamente de estudo, de reflexão e de alimento da minha vida. Muitas vezes foi impossível uma auto-reflexão. Procurei as palavras certas e aceitei-as com a pergunta:  em que mundo quero eu viver?

 

Decidi fechar o círculo em que me fui autoscopicamente inscrevendo, deixando-o desenhado com pontos que se poderão tornar em círculos, e círculos que se poderão expandir para outros pontos.

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Assim, o jogo poderá continuar. A justaposição pode ser realizada com outros textos e com outros coreógrafos e com outros participantes. Podem ser combinados de muitas e diferentes formas. E, mesmo assim, podemos subjectivar todas as combinações de outra forma. Podemos misturar os parágrafos noutra ordem, ou as frases, ou as palavras. Podemos desregrar a sintaxe. Podemos criar novos movimentos dançados e podemos repetir sempre diferente. As possibilidades são infinitas. Podem existir ramificações e diferenciações dos possíveis finais e todos podem ser sempre actualizados. Saí, muitas vezes, de fora de mim. Vi-me muitas vezes do outro lado do espelho. Mergulhei dentro da cabeça dos participantes para procurar soluções. Por isso continuo a gostar de olhar para o meu trabalho como um jogo, como a vida.

 

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isto tornou-se no meu texto

 

 

“I wanted to write that my work consists of two parts: of the one which is here, and of everything that I have not written. And precisely this second part is the important one. For the Ethical is delimited from within, as it were, by my book; and I am convinced that, strictly speaking, it can ONLY be delimited in this way. All of that which many are babbling today, I have defined in my book by remaining silent about it.”

(Cf. Ray Monk, Ludwig Wittgenstein, The Duty of Genius, NY, The Free Press, 1990, p. 178)

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As palavras foram-se transformando naturalmente em imagens. Ou melhor, cada palavra escrita foi-se revelando como uma imagem que foi sendo inscrita nos espaços brancos que habitam em mim e que me alertaram para  um pensamento visual intrínseco ao seu registo gráfico, à semelhança de “Un coup de dés” de Mallarmé (1897).

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Mas quando as palavras se juntam começam as dificuldades. E quando se ligam com outras formas ainda mais complicadas ficam as relações. As relações nem sempre são interessantes ou apaixonadas. As suas ligações nem sempre são compreensíveis, e muitas relações nem sequer são recomendáveis.

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Não me pareceu grave não existir uma relação compreensível. O tempo ajustou as relações e até animou a procura de uma justificação39. A dificuldade foi tornar uma justificação em algo produtivo.

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O desagrado pela minha tendência na repetição de relações e a impossibilidade de evocar as palavras certas - porque essas palavras  provinham da esfera da intenção -,  obrigou-me a tentar novas uniões.  Procurei-as na música contemporânea. Em alguns artistas que interrompem essas relações e deixam as frases e as palavras incompletas.  Procurei-as na fluidez do corpo. Procurei, também, em alguns coreógrafos que o fazem.  E, então, prestei atenção às palavras que se afastam das relações antigas e que se afastam das uniões doentias de prolongar relações convenientes. A magia de um lugar novo, para mim,  aconteceu. Como na música de Alban Berg, onde as frases e melodias estáveis são interrompidas e a relação entre as sonoridades nos podem surpreender, porque nunca as ouvimos assim. Ou como nas coreografias de Pina Bausch, ou nas performances de Joseph Beuys, onde a surpresa da incerteza do momento seguinte nos vai conduzindo a uma experiência vertiginosa.

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Difícil foi organizar as palavras em relações que significassem algo que desconhecesse. E que me obrigassem a sentir algo. Sair da sintaxe da construção frásica repetida, conhecida e lógica – nas palavras, nos movimentos e no pensamento sobre o corpo. Mesmo na repetição e nas tentativas de novas relações estabelecidas com pequenas narrativas persistiu  a insuficiência de fazer conhecer a complexidade de uma experiência.

-Fica-se sempre aquém da realidade - Diz o meu cão.

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Pareceu-me imperativo desligar todas as gramáticas desgastadas que julgava dominar e investir na invenção de uma nova sintaxe poética, seguindo Mallarmé, mas fazendo o exercício de não o repetir. Tentar entender que palavras soltas podem ter as suas unidades de sentido. Palavras que não se relacionam facilmente umas com as outras, ou frases que são interrompidas ou que não são fruto unicamente de  uma intenção. Palavras que combinam frases incompletas e que nos fazem sentir o que é impossível dizer. Movimentos dançados que se pensam e palavras que se transformam em movimentos que se interrompem por novos pensamentos. O que se encobre atrás desta certeza da experiência e do real   não me surgiu  como um fim, mas sim como trabalho. Não sair do lugar revelaria falta de razões sérias para escrever palavras, para criar movimentos e para desejar dizer a realidade poeticamente. Mas o domínio do fazer não bastou. Foi necessário distância e desinteresse em relação ao Ser.

Nas criações coreográficas ou performativas contemporâneas, a relevância dada a particularidades da realidade que em si mesmas são do domínio do senso comum contrapõem-se com a atenção dada a esses acontecimentos do quotidiano no passado. Na arte moderna, por exemplo, estas referências aos aspectos insignificantes da realidade quotidiana tornaram-se mais eficazes do que uma representação que marca o acontecimento e se foca em o desenvolver sem nunca o interromper. O agir e a intenção são encurtados, na tentativa de chegar mais perto da esfera do sentir.  Contudo, o autor da obra artística não identifica imediatamente o acontecimento importante - a experiência- e aplica-se a desenvolver a sua lógica aparente de mutação. O que é relevante é procurado, investigado e desvelado  com sucessivas referências desprovidas, numa primeira visão, de qualquer importância. Será por isto que é tão difícil a paráfrase de um poema, ou de uma performance ?

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Na investigação a nossa atenção tenta regenerar o que por hábito passa por insignificante - porque para fazer emergir o insignificante da sua insignificância não basta ter domínio técnico nem de metáforas e “(...) ter uma ideia não é ideologia, é a prática.” (Deleuze, 1990,p.53) . Assim, julgo que todas as manifestações chamadas artísticas deveriam ser experimentais. Inseguras e sem receios de serem incompreendidas. Na música contemporânea acontece. A melodia e a sintaxe da obra são inicialmente difíceis de captar porque a sequência  de sons é imprevisível. Possivelmente só uma audição repetida da obra  permite sentir que existe melodia, isto é, que estamos perante qualquer coisa que se assemelha a uma narrativa com uma unidade de sentido.

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A nossa capacidade de apreender a realidade tem sido modificada. A pesquisa de literatura e o Estado da Arte educam-nos e obrigam-nos, posteriormente,  a um olhar sobre a insignificância do que é aparentemente insignificante. Podemos descobrir uma abundância de sentidos que a rotina, a distracção e a educação que recebemos não nos permitem ver (Foucault,1975 ). É uma revolução quase marxista: o desprezado, aquele que se desconsidera, torna a surgir da sua condição  e abre-se à luz do dia investido de um poder e importância antes invisíveis. Como Foucault (1975) afirma,

 

“ A vida da interpretação, pelo contrário, é o crer que não há mais do que interpretações. Parece-me ser necessário compreender algo que muitos contemporâneos nossos esquecem, isto é, que a hermenêutica e a semiologia são dois inimigos. Uma hermenêutica que se a uma semiologia tende a crer  na existência absoluta dos símbolos: abandona a violência, o inacabado, a infinitude das interpretações, para fazer reinar o terror do índice e suspeitar da linguagem. Reconhecemos o marxismo posterior a Marx. Pelo contrário, uma hermenêutica que se desenvolve por si, entra no domínio das linguagens que devem implicar-se mutuamente, nessa região intermediária entre a loucura e a pura linguagem, É aqui que reconhecemos Nietzsche” (p.27)

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Porém, o insignificante que se tornou tema importante da produção artística não deixou escapar  as suas características de tema aparentemente menor ou de tópico aparentemente insignificante. Se isso se concretizasse,  regressaríamos  à estética do passado,onde o detalhe de menor significação alcançaria, através da obra, o estatuto de tema maior. Na arte moderna a unidade de sentido menor não perde a sua menoridade, mas junto a outras unidades de sentido, a outros detalhes de importância também menor, contribui para a grandeza e importância da obra. A obra pode ser composta por elementos de significação considerada menor mas, como totalidade acabada, impõe-se como revelação de um sentido que em si tem a importância e profundidade de sentido que no passado só era conferido aos grandes temas, aos grandes problemas, aos acontecimentos que marcam uma existência ou a experiência.

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O que parece massa sem forma pode ser uma forma ainda desconhecida de organizar a experiência e de criar. Evoquei palavras à massa informe composta pelo corpo, pelo tempo, pelo movimento e pelo pensamento. Tratei-as como um fluido que se justapôs ao movimento do corpo e que nasceu do pedaço de branco que existe entre o meu coração e o meu estômago e realidade  poética.    

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A dança mostrou-me a mudança na acção e o texto proporcionou-me a reflexão que actuou como uma imagem do que se passou. Com sorte, a diferença real e a real repetição tornaram-se possíveis, em algumas situações. E, com mais sorte ainda, a representação ficou fora do jogo. Foi parte da actualização em que a singularidade foi transformada em novos frames que também foram parte da criação. Foi, também, um limite do meu pensamento. Ou seja: qualquer coisa que dificilmente poderá ser pensado. Uma captação em paradoxo. Foi um paradoxo.

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Os textos e a dança produziram conexões arbitrárias, fazendo-se coexistir no espaço e no tempo. Embora o espaço e o tempo da escrita e da dança sejam diferentes e se torne difícil a simultaneidade nas correcções, os diálogos com o meu cão foram uma ajuda fundamental, pois neles raramente se voltou atrás. Assim, a casualidade foi um ponto de partida, com o risco da continuidade ser decidida pelas regras da linguagem. Ciente de que a escrita é um processo linear - de linha em linha que se divide constantemente em passado e presente -, a sorte interferiu nesta constante divisão, e uma diferenciação foi possível. Em cada ponto os argumentos de uma linha foram subdivididos em novas fendas (pedaço de branco) que não foram braços fortes de uma árvore frondosa, mas sim ramos multidirecionais de um Rizoma. E, mesmo na memória de um texto, outras estruturas foram possíveis. Conexões arbitrárias tornaram-se praticáveis na coexistência do tempo na memória. Esta possibilidade possibilitou várias combinações40 de estrutura e arbitrariedade.

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Pela junção aleatória produzida entre textos e dança arbitrariamente justapostas, o encontro foi possível. Por coincidência, uma das conexões foi produzida entre mim e o grupo de alunos que me acompanhou, porque todos estávamos ocupados com uma mudança de paradigma. O arbítrio muitas vezes foi guiado pelo acaso que, rapidamente, se tornou noutro acidente.

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Tanto os textos, como a dança, mostraram que são uma armadilha que nós, humanos (e o meu cão), não controlamos, ou melhor, que estão mais nas mãos dos próprios textos e dança do que em nós.

Por isso, devemos saber quando acabar.

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Relativamente à frase de Cummings com que abri a escrita desta pesquisa, o problema é que ser "individuality" não está ao meu fácil alcance. Tudo tende a fazer de mim uma pessoa de senso comum. Agimos segundo modelos que nos são fornecidos e que raramente pomos em causa. Vamos andando. Confortavelmente arrastados pelo passado. Mas vamos. A pergunta que me ficou foi: como é que somos um se tudo nos faz iguais e repetidos?

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38 O meu cão morreu.

39 Em 2011  filósofo Quentin Meillassoux  decifrou o segredo do poema lendário de Mallarmé “ Un coup de dés”. Uma demonstração virtuosa e uma meditação sobre a ideia da incerteza. As ligações foram assim animadas por uma possível justificação. http://bibliobs.nouvelobs.com/essais/20110928.OBS1316/le-

40 Por exemplo entre o sistema e os dados ou entre o material e a manipulação.

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