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1: movimento como transformação

Maria Ines Villasmil

 

 

o laboratório

 

 

Maria Ines Villasmil30 foi uma das primeiras coreógrafas que convidei para experimentar no laboratório.  O projecto foi centrado na exploração do conhecimento empírico e focado nas subjectividades e diversidade de dez participantes. No processo de trabalho, o foco principal foi a procura da intersecção entre arquitectura (espaço público), coreografia, corpo e escrita. Tendo como ponto de partida a metodologia oficinal e de artesanato desenvolvida pelo sociólogo Richard Sennett (2008)31, como forma de incubar as ideias, o projecto foi inserido no currículo dos alunos de dança, em formação, na escola de ensino artístico Arte Total.  Durante uma semana de experimentação os participantes pesquisaram a ligação entre o espaço, a memória, o corpo e a escrita, tendo como ponto de partida o mapa da cidade e o seu deslocamento para uma zona de intervenção pré definida. Esta foi a primeira tentativa de reinventar formas de acção artística colectiva através da relação entre corpo e escrita com este grupo de estudantes.

 

 

o processo

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No primeiro dia foi pedido aos dez intérpretes que encontrassem nas ruas do centro da cidade  espaços que lhes fossem, de alguma forma, importantes. Que os explorassem, que os experimentassem com o corpo e que os anotassem de forma escrita. Os registos das ideias, pensamentos, acções deveriam ser escritos nos locais escolhidos.

 

O trabalho de partilha instalou-se. A escrita também. Desde o início do projecto senti que há um pedaço de branco entre o meu coração e o meu estômago. Um espaço vazio e intocável, onde não há dores. Liso, leve e pesado ao mesmo tempo. Entrei nele. Entrei  com a lentidão igual ao fluxo de fiéis no final de uma missa dominical. Um fluxo colectivo de paráfrases, em prosa, de um objecto artístico que foi crescendo colectivamente, integrando a escrita  como  apenas uma parte importante de um corpo - como um esqueleto. E fiz perguntas. Que tipo de pedaço de branco é este? Como devemos chamar a este lugar debaixo do meu coração e acima do meu estômago? Existe uma relação entre o pedaço de branco e a escrita? Como explicar aos outros estes espaços de mim para mim? Como poderão, os participantes  no projecto, dizê-lo?

 

A memória colectiva do corpo, que aqui foi evocada, é uma escrita engajada, porque quem a escreveu – os participantes - tomaram posição nos problemas. Emergiu de um desconforto interior e reactivo a uma escrita credibilizadora das suas criações  e com tecnologia reconhecida pela economia do conhecimento.  A procura dos limites barrados pela produção de textos mudou a condição do trajecto essencial à criação de um único sentido32, do qual os corpos que sentiram os espaços e criaram textos foram testemunhas. Tornou-se apenas no  que os  sentidos lhes foram dizendo, cheios de ilusões e representações. Ou seja: o corpo existiu como um pedaço de branco que contrariou a forma lógica do discurso e como um campo de reflexão crítica que comportou o processo do fazer artístico, em polifonia. Como escreveu Bakhtin (1929), “(...) uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros.” (p. 113). A memória dos participantes permitiu que os seus antepassados felpudos invadissem com palavras  espaços intocáveis de forma que se tornou possível dançar com as palavras (como diz Zizek, "fuck with words" (2006, p.189)).

 

E o meu cão voltou:

​-Portanto, a relação não é uma relação em si. Como afirma Zizek, no livro Parallax View, é o produto de uma situação antagónica... um excesso ontológico.

 -Sim, pode ser. Sabes, cão, o pior é que o excesso de excepção sustenta a normalidade, e eu ando às voltas com resultados de um excesso sem normalidade, porque  os participantes do projecto não estão a pôr em prática a sua intimidade, mas sim a escrever sobre ela.

-Uhmmm... fuck with words”

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No segundo dia foi sugerido que voltassem aos espaços seleccionados e que os testassem e sentissem com o corpo. Foi pedido que reflectissem na possibilidade de criação de movimentos coreográficos (sequências de movimentos) derivados desses espaços.  Os participantes continuaram as suas tarefas de escrita e construção coreográfica. Uma verdadeira pesquisa em acção onde a desorganização do signo, do contexto, da consciência e do corpo, que Gil (2001) e o meu cão apontam, abriu a possibilidade de pensar um projecto de dança laboratorial, sendo experimentados processos de criação de movimentos em relação com uma escrita performática. O corpo que aqui foi evocado foi aquele que dança, que se constrói no presente, na experiência, que “desmembra o paradoxo, separa os seus elementos e recombina-os, sobrepõe-nos, joga com eles fazendo proliferar o sentido”(Gil, 2001, p. 237)

 

No terceiro dia foram registadas diferentes configurações resultantes dos  procedimentos operatórios nos espaços seleccionados. Cada participante escolheu o espaço que mais lhe agradou experimentar e coreografar e daí produziu um texto sobre esse espaço preparado, sobre si e sobre os movimentos que produziu nessa acção performática. A criação de textos, partindo desta relação corpo|escrita, foi considerada ou ponderada pelos múltiplos caminhos que se lhe abriram e com os estilos que lhe foi  possível conquistar (Adorno, 1958): aforismos, fragmentos, ensaios33. Não pretendeu ser autoritariamente superior nem tão pouco ser subjugada pela hegemonia da teoria e do conhecimento académico. O acto de criação de um corpo que escreveu não emergiu com ou sobre os referenciais de códigos linguísticos da escrita, mas sim a partir de e com eles (Deleuze, 1991), não estando exposto à relatividade do conhecimento académico, mas sim sustentado pela multiplicidade de sentidos. No seu movimento, os corpos que escreveram relacionaram-se com outras formas de abordagem da realidade que diferem de si e relacionaram-se com ela, em simultâneo, com a validação crítica da possibilidade de as poder rever. O corpo que se foi escrevendo assumiu o espaço ocupado por imagens escritas nos textos, que foram sendo construídas ao longo de uma semana em laboratório e nas oficinas subsequentes. Configura um processo de escrita baseado na prática dos corpos coreografados e, desta forma, o corpo assume-se como espaço de ensaio da escrita.

No quarto dia foram gravadas as vozes de cada um com a leitura do seu texto. O som dos textos imprimiu novas dinâmicas aos movimentos criados. Foram experimentados vários espaços para cada sequência coreográfica, de cada participante, com a junção do suporte áudio de cada voz. Por fim foram seleccionados e distribuídos os espaços por cada um. 

 

-Foi uma selecção de situações de espaço-tempo com qualidades específicas, desenhadas a partir de um universo no qual todas as situações de espaço-tempo vão tendo todas as possíveis qualidades que estavam disponíveis, como já um dia Brecht escreveu no seu Notebook II? - perguntou-me o meu cão, que entretanto se deitou ao sol depois de um belo banho.

-Não tinha pensado nisso... mas parece-se que sim. Sim. Definitivamente, sim. A introdução do som abriu esse espaço-tempo, embora não entenda muito bem o que isso  quer dizer. Espaço-tempo, espaço-tempo... olha, cão, como escreveu Foucault :“Em todos os casos, acredito que a ansiedade da nossa época tem a ver fundamentalmente com o espaço, muito mais do que com o tempo.” (1967, p.2)

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O quinto e sexto dias foram dedicados à organização, ensaios e respectiva  apresentação ao público.  Oito solos para serem vistos por uma só pessoa, de cada vez.

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Termino com a mesma pergunta com que iniciei este texto. Existe porque está escrito, não é?  Constato, como coisa natural e transparente, que a linguagem escrita está sempre presente, como se a criatividade da dança contemporânea incorporasse a escrita como uma forma lógica de validar a sua própria existência. E, mesmo assim, é difícil existir, não é?

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30 Nasceu na Venezuela e tornou-se cidadão Holandesa em 2004. Após uma carreira como  socióloga e tendo desenvolvido uma carreira de dança paralela -estudos de dança na Venezuela e em Nova York. Em 1996, muda para a Holanda onde obtem em 1999 o BA da School for New Dance Development da Amsterdam Hogeschool voor de Kunsten. Em julho de 2004, Maria concluio o master degree in Choreography and New Media - Dance Unlimited - na Amsterdam Hoogeschool voor de Kunsten. Em 2015 concluio  Mestrado em Cultural Management and Creative Industries da Universidade de Salamanca.

31 Reflecte sobre as relações entre o pensamento e a mão, e como essas relações despoletam técnicas que possibilitam o progresso dos sujeitos. No vínculo entre a cabeça e a mão fica marcada a relação de subjectividade e das características culturais, políticas, sociais e económicas da vida em comunidade.

32 O texto de Deleuze (1987) - O acto de criação- também contribuiu para um  posicionamento útil para clarificar a temporalidade do movimento como uma reflexão contínua que afecta todo o sistema em que se constrói o sentido do pensar e do agir - como mapa de um corpo|escrita . Um corpo|escrita intrínseco ao tempo e ao espaço. Assim, de uma forma não teórica, pensou-se um agir que se tornaria teoria quando contrariasse o agir que tentava sacrificar a criação em proveito da razão.

33 O Ensaio que recusa formas naturalizadas de  produção de conhecimento e que “(...) mergulha nos fenómenos culturais como numa segunda natureza, numa segunda imediatidade, para suspender dialéticamente, com sua tenacidade, essa ilusão” (Adorno,1958, p. 39). “Só o ensaio desenvolve os pensamentos de um modo diferente da lógica discursiva (...) Não os deriva de um princípio, nem os infere de uma sequência coerente de observações singulares. O ensaio coordena os elementos em vez de subordiná-los .”(Adorno,1958, p.43)..)

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