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3: movimento como meio de pensar o corpo

Peter Michael Dietz

 

o saber do corpo

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O corpo sem orgãos, embora seja uma das expressões e conceitos de Deleuze e Guattari, frequentemente invocado por artistas que trabalham o corpo, é mais complexo do que parece. É um conceito que confronta, com violência, a questão de saber o que é o corpo, definido pelo que ele não é. Implica entender o corpo num sentido diferente da sua definição de dicionário. O corpo sem orgãos não é um organismo humano nem uma representação. É um “safar” da ideia que construímos de organismo.

 

Contudo, parece-me que existe algo no trabalho de Peter Michael, que se aproxima do corpo sem orgãos. Peter tenta desmontar as hierarquias do corpo37. Nos trabalhos que realizou no programa GUELRA, Peter criou procedimentos para construir as suas coreografias e perturbar a hierarquia do corpo, levando ao extremo a prática que o distingue. Disse-me na entrevista que realizei :“(...)não sei então o que é esta situação, talvez seja uma situação de si própria, eu sou um grande fã de processos(...).

 

O corpo sem orgãos é um conceito quase incompreensível - como o é, julgo eu, o corpo que dança. O corpo sem orgãos é um limite que nunca é completamente apreendido, ou seja: não existe para ser dominado. Ele não pode ser obtido e, se assim for, apenas momentaneamente. Peter Michael relatou-me:“(...) há pessoas que me dizem às vezes “Uau! é muito bom escutar o que nos está a dizer, porque faz sentido quando você mostra a 'dançar'(...)”.

 

Todo o trabalho de Peter Michael Dietz no projecto GUELRA foi registado em vídeo e fotografado desde o primeiro dia do processo de criação até à performance final com público, abrindo outros aspectos a considerar como, por exemplo, a dificuldade em entender a experiência do corpo do coreógrafo. Mas, na verdade, isso só abriu à reflexão de outros aspectos interessantes: a dificuldade em aceder à experiência do corpo que dança e do corpo que se torna virtualmente histórico.

 

O corpo sem órgãos não se opõe aos órgãos, mas à organização dos órgãos. O corpo sem órgãos expressa-se numa atitude de curiosidade e observação, que aparece quando nos questionamos sobre o que estamos exactamente a fazer quando vemos, ouvimos, sentimos, cheiramos ou provamos qualquer coisa. Quando quebramos a barreira da hierarquia que condiciona o nosso olhar, o corpo sem órgãos desempenha um papel muito importante que mina o significante automático. Torna-se num processo de experiência sensorial. Acontece quando procuramos o material intensivamente, sem forma, não codificado, o que resta de um corpo quando o seu significante e a sua subjetividade estão desorganizadas.

 

Na sequência de Deleuze e Guattari, aproveitando as três qualidades que caracterizam este corpo sem orgãos: desarticulação do organismo, a experimentação sem interpretação, e nomadismo, a escrita dançada de Peter Michael aponta-me :

 

i)A desarticulação do organismo que ocorre quando trabalha na desmontagem, reavalianção, organização física e psicológica da sua própria subjetividade. Esta operação só poderá ser efectuada através de um completo e detalhado exame ao corpo habitual.

 

ii) A experimentação sem interpretação que ocorre quando uma experiência é vivida sem lhe conceder um sentido pré-determinado, para evitar ser transformado em significado ou significante.

 

iii) O nomadismo que existe em Peter Michael Dietz, quando concebe o seu corpo como um fluxo, um ser com intensidades múltiplas e que é uma fusão de variações que estão num estado perpétuo de vir a ser.

            

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Peter sem ser Pan


O Viking: Conheci-o há vinte anos atrás. Falava mal português e era difícil entender o que lhe ia na cabeça. Muitas vezes pensei: ok, respira fundo Cristina. É só mais um Viking! Mas, ao mesmo tempo, o gajo tinha qualquer coisa que me fazia gostar muito dele. Sabia trabalhar com o que via à sua volta. Estava atento e olhava para além do olhar. Via com o corpo todo. Era um nórdico tresmalhado.

 

Encontro: Fui acompanhando o seu trabalho e fui também vendo o seu cabelo cair e a sua barriga crescer. Fui sabendo da sua partida e da sua chegada. Nos momentos em que precisei esteve presente. Sim. Conheci-o de novo há poucos anos atrás. Muitas das nossas transformações foram semelhantes às minhas. E dilemas. E angústias. E paixões. Os caminhos são diferentes mas acabamos por lá chegar, um dia. Como numa viagem de comboio. Há estações onde nunca paramos, mas sabemos que existem.

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A Mãe: É minha mas adoptou-o. Sorte. Não é para todos. São poucos os eleitos. É Maria Emília e não Amália... mas gostaria de ser. Há corpo, família e terra. Que sorte que tu tens em ter a minha mãe!

 

Sonho: Roí freneticamente uma tampa de caneta bic. Raspei o plástico com a serrinha dos meus dentes. O plástico era verde e cheirava a boneca espanhola. Cada lasca saída entrava directamente na minha garganta. E transformava-se numa palavra: Green.
 

The Green Man: Quantos? E Gaius Valerius Catullus responde - “(...) em tão grande número que os não possam contar os curiosos, nem fazer-lhes feitiço os maldizentes.” Ainda não tenho uma colecção como a sua, mas conto com a minha imaginação para a enfrentar.

“O significante flutuante designa esta força primária que, no mundo primitivo, circula por toda a parte entre os diversos mundos, atravessando os códigos, enchendo os seres e as coisas de poderes, de sorte e de vida” (Gil, 1997, p.25).

 

Capa de mágico: Ensaiamos muito. Repetimos muitas vezes. Porque será que necessitamos de tantos ensaios para uma peça sem público? O corpo também pode falar. E é nosso. Só nosso. Fala para acusar. É um delator. Revela segredos. Denuncia o que está fora da sua consciência, que o fecha em si e que o silencia. Silencia com o poder da palavra e faz-nos falar de outra coisa que não do objecto desejado. Uma espécie de forro exterior de capa de mágico.

 

Lamento: Mesmo assim não diz tudo. O seu corpo assume-se como espaço de escrita. Uma lente para o mundo, mesmo quando o diálogo vem de duas linguagens distintas – a dança e a escrita - , não tem sido um confronto de sistemas, mas sim uma comunicação entre eus. Mesmo que partindo de diferentes códigos discursivos, só alguns artistas, como o Peter Michael, conseguem relacionar-se com premissas exclusivamente corporais: Existe porque está escrito, é ou não é? Ou não!

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como ele escreve

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“This is much more than just a try out!

We will not lie, about this moment....

It is a situation of sharing informations, and knowing that it will fail totally...!

We believe performance art is to question an authority of any kind....

Not that it is political directed-----

Maybe more in the sense of “ what´s happening....around us...with us – inside of us.

Our stories, our weakness, our floating around...

I want to say something---- do something.....

It might not be concrete and solid.....

Maybe just a thought....

Which always returns to....

I need to Express myself.

This is not a commitment in itself.

It is for everybody- what does That mean.

We can all be artists.........at least for a moment in time...

By direction; how to do it...

Information, where to do it...

The execution of the moment have an impact...

What does all this mean.!

First the encounter, then the training/to play/to move/to accept/to be available/to deny/go for the proposal,

and believe, because it can happen.”

(Peter Michael Dietz, 2012)

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Por que é que existe, por parte dos artistas de hoje, tanto interesse por áreas do saber que envolvem pensamento e escrita? O que impulsiona a relação entre pesquisa e trabalho artístico na dança? Se partes retalhadas do corpo conquistam o estatuto de erógenos através da impressão recebida por um estímulo exterior, será que as outras partes que não são experimentadas pelas sensações das partes, são incorporadas pela linguagem?

 

Françoise Dolto (1984) indica a verbalização como a transição simbólica que assume o compromisso na substituição de um objecto.

 

“‘Não, acabou, nada de mamar’. Palavras que permitem que a boca e a língua retomem seu valor de desejo.”(Dolto, 1984, p. 50).

 

Apesar de estas palavras serem palavras ditas sem nenhum significado para o receptor, às quais Dolto chama fonemas transicionais, servem perfeitamente bem ao registo familiar de que a verbalização preconiza a função de ponte entre o corpo (mãe) – fonte erógena – e outro objecto (bébé). Em simultâneo, verifica-se o primeiro registo da interdição do objecto. Trata-se de uma promessa de separação do corpo: um sintoma de castração.

 

Existem livros que defendem a existência de uma linguagem do corpo implícita à palavra que tem a competência de manifestar o que na realidade incentiva o sujeito para além do seu comportamento. Será, então, esta linguagem implícita do corpo, um atalho para o que não sabemos? Parece-me ingénuo. Mas, contudo, esta escrevência que tenta pôr a par o verbo e o corpo, unidos por um controle racional, toca as pessoas. Mesmo as instruídas! O poder da palavra faz-me tremer de raiva por não saber verbalizar o que o corpo fala, pois as palavras que controlam as causas que provocam sintomas ainda não foram inventadas.

 

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dançar de Mãe

 

Sim: existo dentro do meu corpo. Não trago o sol nem a lua na algibeira. Não quero conquistar mundos porque dormi mal, Nem almoçar a terra por causa do estômago. Indiferente? Não: natural da terra, que se der um salto, está em falso, Um momento no ar que não é para nós, E só contente quando os pés lhe batem outra vez na terra, Traz! na realidade que não falta!

Alberto Caeiro (1994, p.147 )

 

Depois de trabalhar com o corpo durante tantos anos, só quando nasceu o meu filho é que me apercebi de muitos assuntos pertinentes. Ele fez-me reflectir sobre o corpo. Com as suas perguntas e pensamentos nonsense fui descobrindo, em mim, novas formas de ver e de sentir.

 

Mãe, a gelatina dos olhos tem sentimentos? Mãe, só sentimos o nosso corpo quando o pousamos em qualquer sitio, não é? Mãe, gostava de ser um micróbio para poder entrar dentro do corpo das pessoas para as conhecer melhor. Mãe, o que faz ser inteligente é o coração ou o cérebro? Estas questões, entre muitas outras - que me vai colocando desde que nasceu, têm produzido, em mim, uma certa consciência sobre a multi dimensionalidade do corpo, do mundo em movimento, da dança e das suas possibilidades. Então, porque é que existe tanto interesse, por parte dos artistas, pela filosofia, pela literatura, pela sociologia e pela relação entre pesquisa e trabalho artístico? O que move esta dobragem? O que esconde esta volta performativa da arte contemporânea? Não é só o falar sobre, certamente. É, julgo eu, a necessidade de pensar. Hoje, existe uma asfixia da vida que não facilita o acto da criação. Isto significa que se tem uma percepção cada vez mais tecnocientífica e pragmática (no mau sentido da palavra) das coisas.

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Hoje ainda sinto que, no universo da dança, não existe um caminho de pensamento dançado. E, de facto, os caminhos são múltiplos. E aqui volto ao meu filho. As crianças, curiosamente, têm esse dom. São elas que melhor nos informam sobre os códigos secretos do corpo e sobre a sua energia. Conhece-se melhor as pessoas quando se está perto delas. Conhece-se por dentro. É-se um micróbio. Estar atenta às reacções corporais das crianças tem sido uma grande lição.

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Assim, com a asfixia da vida, o domínio do trans-artístico dificilmente passa a ser uma fonte. Uma fonte para se pensar e dar profundidade e continuidade à obra, não só para compreender o que se faz mas, também, o processo de compreender o que se vai fazendo. Ler Spinoza, ler Deleuze podem ser maneiras de oxigenar essa asfixia da vida quotidiana, que é, em muitos casos, um esgotamento das possibilidades de vida e multiplicação de sentidos. Por isso se recorre tanto aos espaços de pesquisa. Mas haverá outras razões?


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o espaço da alquimia

 

O espaço da alquimia apontado por Derrida é o que entendo neste estudo como um espaço de experimentação e de pesquisa. A experimentação, neste sentido, enuncia uma escrita que se forma a partir de um conjunto de relações entre os estímulos inscritos num corpo crivado de sinais reais (Dolto, 1984) e um esboço de texto (Gil, 1997; 2001), onde flutuam e se pré-formam unidades pré ou proto literárias. Ou seja: um corpo que não pertence a nenhum código simbólico, mas sim um corpo como significante flutuante, que permite as metáforas e as metonímias de um pré acto de criação. “O significante flutuante designa esta força primária que, no mundo primitivo, circula por toda a parte entre os diversos mundos, atravessando os códigos, enchendo os seres e as coisas de poderes, de sorte e de vida” (Gil, 1997, p.25).

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Os estímulos inscritos no corpo, admitidos por Françoise Dolto, passam a valer como signo e o espaço da alquimia que envolve o acto criativo da escrita, descrito por Derrida, passam a ser, como Breton anunciou no Manifesto Surrealista (1924), a “aproximação de duas realidades mais ou menos afastadas”. A intensificação de energias e a focalização da vontade em produzir um objecto artístico (Gil, 2001), que conduzem e afectam o corpo do criador como uma experiência total, enfatizam esta consciência inconsciente que invade o pensamento racional e que faculta a percepção da alteridade que comumente procura censurar.

 

Este signo é não linguístico, mas sim um espaço onde toda a futura construção da linguagem se vai desenvolver, segundo fases sucessivas de erogenização do corpo (marca do outro no corpo). Isto significa que há inscrição dos estímulos exteriores e interiores do corpo. Compreende-se, assim, que o corpo se torna num reservatório infinito de signos e de linguagens ligadas ao verbo. Pensando a questão da escrita pelo conceito de corporalidade e fazendo uma travessia pelos domínios da palavra, poderá problematizar-se, por um lado, o texto como um ser corporal (Nancy, 2000; Barthes,1970) e, por outro, a experiência do phármakon (Derrida, 1972) como veneno e remédio, permitindo ler nas camadas de um corpo phármakonizado a duplicidade e a ambiguidade de sentido... e o meu cão chegou de um longo passeio. Sentou-se perto de mim, olhou-me nos olhos e disse:

 

-Os bailarinos são como Deus que “(...) não sabe escrever, mas esta ignorância ou esta incapacidade dão testemunho de sua soberana independência. Ele não tem necessidade de escrever. Ele fala, ele diz, ele dita, e sua fala é suficiente. (...)”. Estou a citar Derrida (1972, p.22), mas lembrei-me, entretanto, de um bailarino que era escriba de Deus. Nijinsky, claro.

 

-Claro!- Respondo-lhe eu. Hoje não vou discutir contigo. Não vais ouvir uma única palavra polivalente e irradiante, como estás a tentar provocar em mim. Hoje vou escrever-te um bilhete. Gostaria que as palavras escritas te estimulassem a pensares pensamentos teus.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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O cão deitou-se e adormeceu. Deve ter sonhado muito, pois ouvi-o várias vezes choramingar. Quando acordou perguntei-lhe:

 

- Com que estavas a sonhar?

Respondeu prontamente:

- Com Nietzsche. Ou melhor, com cada homem que existe e com as suas visões parciais da verdade.

-Foi um pesadelo!

-Foi, sim senhora. E a culpa é tua que me escreves bilhetes destes. Deve haver uma verdade nele, mas eu hoje já fui castigado com o bocadinho de verdade que me toca. Prefiro falar.

-Pois! E eu serei o teu escriba. Está bem. Hoje pode ser assim. Sabes que não é a mesma coisa, não sabes? Eu posso transcrever a tua fala, mas o que fica é secundário!

-E...? Qual é o problema? Já existimos há tanto tempo que já somos todos secundários dos secundários dos secundários... dos...

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Ambas, escrita e dança, solicitam ao corpo uma transposição, um movimento incisivo para o interior de um espaço. Em ambos os casos as fronteiras que emolduram a condição do sentido são infinitas. Secundárias, de secundárias, de secundárias..., como diz o meu cão. São pontes por onde não sei se se passa, ou se se cai, onde o corpo começa: dança e escreverás: como Alice no País das Maravilhas: “Down, down, down. Would that fall never come to an end? I wonder how many miles I've fallen by this time?”(Carroll, 1886, p.14).

 

 

37 Esta conexão entre corpo sem orgãos e coreografia é feita, por exemplo, por Copeland (2004) em “Merce Cunningham: The Modernizing of Modern Dance” (pp. 234-236)

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